“Baronesa” e “Subybaya”: de tijolos e implosão

Dois representantes da produção cinematográfica mineira, exibidos em competição na Mostra Aurora, da 20ª Mostra de Tiradentes, “Baronesa”, de Juliana Antunes, e “Subybaya”, de Leo Pyrata, são filmes de propostas distintas e que seguem caminhos inversos, ainda que interseccionais. Afinal, ambos foram filmados em Belo Horizonte, são protagonizados por mulheres e valorizam o empoderamento de suas personagens (e Juliana ainda faz uma participação especial como atriz no filme de Pyrata).

“Baronesa” (2017) – Divulgação

“Baronesa” parte da proposta de filme híbrido, em que a natureza documental da imagem, captada em locação, exatamente no lugar onde as personagens vivem, é mesclada com a encenação do cotidiano. As atrizes, Andreia Pereira de Souza e Leidiane Ferreira, interpretam elas mesmas — e aqui temos que dar atenção ao verbo “interpretar”, pois as duas de fato estão desempenhando papéis em frente a uma câmera.

Andreia e Leidiane sabem da presença do dispositivo, seja dentro de casa, seja no quintal. Ao mesmo tempo, Juliana não se esquiva de roteirizar cenas, por mais que esse roteiro não exista do modo tradicional. E junto à diretora de fotografia Fernanda de Sena, ela pensa na composição dos enquadramentos, algo evidente pelo posicionamento não apenas da câmera (muitas vezes fixa, mas não via de regra), como também das atrizes e dos objetos em cena.



O filme (todo filme) surge a partir de um propósito, de uma estratégia e de uma negociação. No entanto, ele só existe e se sustenta por meio do pacto entre elenco e equipe, entre tela e plateia. E é nesse pacto que o pulso de “Baronesa” se faz sentir, na proposta feita desde os primeiros frames do longa, quando uma jovem dança funk dentro de um quarto. A pergunta a ser feita aqui é: “para quem ela dança”?

Numa primeira leitura, ela dança para ela mesma, como se ensaiasse o “quadradinho” para o baile de logo mais. Contudo, se ela tem consciência da presença da câmera, ela dança para alguém. Logo, aquela não é uma performance solitária.

A câmera também não está só, não foi simplesmente deixada no local. Há movimento. Há ângulo. Há escolha. Há uma pessoa ali operando o equipamento. A jovem seduz a lente, que por sua vez atrai a jovem, que sabe que está sendo observada e quer ser observada.

É esse o jogo que “Baronesa” propõe, da cena de abertura em diante: Andreia e Leidiane (e também Felipe Rangel Soares, o único homem adulto com quem elas contracenam) trabalham em conjunto com a equipe do filme, desde a primordial permissão para estar lá até a concessão para o que ficou no corte final. Processo colaborativo que tem origem com o “Nanook” de Robert Flaherty, em 1922, que se consagra com o “Jaguar” de Jean Rouch, em 1967, e que tem em Pedro Costa (“Ossos”, “No Quarto da Vanda”, “Cavalo Dinheiro”) uma de suas mais potentes reverberações contemporâneas.

Se as vidas retratadas na tela estão em constante construção (algo inevitavelmente representado nas casas nunca acabadas em que moradores das diversas periferias vivem, no Brasil e fora dele) também o filme é erguido diante dos nossos olhos. E tal como o ideal de Andreia, de sair daquele lugar circundado pela iminente guerra do tráfico e se mudar “o Baronesa”, o longa parece estar a todo momento buscando uma rota de fuga. Quando ele finalmente imerge numa possível fabulação, a realidade invade e desconstrói o quadro — seja literalmente, quando um tiroteio irrompe e provoca uma reação imediata em todos (elenco, equipe, plateia), seja pela nossa própria percepção transitória de que isto é ou não é um filme.

Há um plano muito bonito que vemos logo depois de Andreia levantar uma parede de tijolos por conta própria, um plano que resume bem a ideia que se pode formar de “Baronesa”: Andreia está sentada no que será uma janela, acompanhada de uma lata de cerveja e um cigarro. O nosso olhar está em Andreia e na cena. Já o olhar de Andreia é para o extracampo — que é justamente onde ela está, aqui fora, onde sua vida continua com todas as incertezas pós-filme.

***

“Subybaya” (2017) – Foto: Lucas Barbi

“Subybaya”, de Leo Pyrata, acompanha uma jovem de classe média (papel de Bruna Chiaradia) enquanto ela frequenta bares, festas e casas noturnas, em Belo Horizonte. O filme se desenha desde o começo como uma jornada de libertação sexual, uma vez que a protagonista demonstra inicialmente ter dificuldade em “sair com qualquer um”.

Após uma noitada, em um travelling muito bonito e bem realizado, nós acompanhamos a personagem subir a pé a Rua da Bahia (o título do filme vem do célebre verso de Rômulo Paes, “A minha vida é esta, subir Bahia e descer Floresta”). Um tanto trôpega e exasperada, ela persiste na caminhada até chegar à casa dos pais, situada num dos bairros mais conservadores da capital mineira.

A cena é bastante significativa, já que, ao passo em que progressivamente relativiza seus conceitos sobre relacionamentos, a moça vive o conflito da culpa católica, intrínseca à tradicional família mineira (poderia ser também à “família brasileira”, mas em Minas, certas tradições são de fato mais fortes).

“Conflito”, aliás, me parece a palavra mais adequada para definir “Subybaya”. De acordo com o que os realizadores do filme expuseram na apresentação do filme em Tiradentes (e no debate do dia seguinte), o longa surgiu de uma crise ocorrida durante a produção e que acabou sendo incorporada ao que se vê na tela. O que era de se esperar, posto que é um filme essencialmente sobre questões femininas, mas escrito e dirigido por um homem. Como resolver esse impasse? Há solução?

(Uma pequena intervenção neste momento, pois aqui eu sinto a necessidade de me expor na primeira pessoa, algo que não faço habitualmente em meus textos. Intervenho porque sinto que a minha interpretação do filme acabou sendo influenciada pelo discurso dos realizadores. É uma influência que sempre procuro evitar antes de assistir a um filme e, quando é o caso, também antes de escrever sobre ele. Mas, neste caso específico, a interferência foi inevitável, não apenas pelo ambiente de festival, em que muitas vozes se encontram (o que é, sempre foi e sempre será saudável), mas porque, talvez já prevendo que o filme seria atacado, pareceu-me ter surgido a necessidade de uma pré-defesa por parte da equipe, já que muitas colocações foram feitas antes que qualquer pergunta fosse feita. Logo, escrevo sob essa influência, que no fim alimenta ainda mais incertezas.)

“Subybaya”, então, é um filme ou um processo? É certo que ele se desenvolve e se transforma em algo completamente diferente daquilo que é quando começa. O questionamento surge da impossibilidade que a própria narrativa assume: não há como seguir em frente. O filme para. O diretor se torna personagem da própria obra. A produtora dele também. E o próprio conflito também. Sem entrar em descrições muito detalhadas para não prejudicar a experiência de quem ainda não viu o filme, mas para o que acontece a partir de certo momento da projeção, o uso da expressão “quebra da quarta parede” não me parece nem mesmo adequado. A tela implode, isso sim.

Inegavelmente, trata-se de um trabalho provocativo, não no sentido de buscar sensacionalismo, mas por sair da zona de conforto e provocar a reação da plateia, muitas vezes condenada à passividade e à apatia diante de certas propostas estéticas viciadas, encontradas no próprio ambiente de festival. Pyrata provavelmente não teve intenções machistas e, se porventura alguma surgiu no processo, as autoras dos diálogos adicionais demonstram, no próprio filme, terem chamado a atenção do colega sobre o seu lugar de fala. Há uma subversão neste momento do filme que agrada bem mais do que o que vinha sendo narrado até ali, pois é quando “Subybaya” de fato acontece. Ele cresce justamente quando inicia sua suposta autodestruição.

Aqui, eu devo reconhecer o meu lugar de fala, também. Certamente não sou capaz de avaliar os erros e acertos da discussão feminista contida no filme por um ponto de vista masculino. Mas do ponto de vista de crítico, analisando o filme por seus atributos estéticos, me parece que “Subybaya” é coerente e pertinente.

Antes de encerrar o texto, só gostaria de lembrar de “À Prova de Morte”, de Quentin Tarantino, pois é um filme que parte de uma proposta semelhante a de “Subybaya” no que diz respeito ao empoderamento feminino e à sua própria desconstrução como filme de terror exploitation. A grande diferença, me parece, além da tarimba de Tarantino, está no recorte do gênero cinematográfico, proposto desde o início como algo muito específico, ao passo que Pyrata se fere no timing da quebra da expectativa de seu discurso. ■

Ouça o podcast cinematório café em que discutimos “Baronesa” e “Subybaya” — aqui — e confira a nossa cobertura completa da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes.