Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

“Invisível”: O cinema e sua obsessão pela subjetividade

por Leandro Luz

O cinema, talvez mais do que qualquer outro segmento da arte, carrega nas costas uma obsessão permanente pela busca da subjetividade. Quando bem coordenados, os departamentos artísticos concebem a narrativa de uma obra de modo a causar determinadas sensações no espectador e/ou refletir o estado emocional de seus personagens. O som, por exemplo, pode ser idealizado e manipulado de diversas formas para que notemos a presença de determinado elemento ou mesmo para suprimir algo que não tenha exatamente uma função narrativa clara e importante para o que se quer atingir. Numa determinada cena, o ruído de um ventilador pode tomar conta do ambiente, as buzinas dos carros podem invadir a sala de uma casa e a utilização de música, diegética ou não, é capaz de evocar uma gama sem fim de impressões. Desta mesma maneira, fotografia, arte, montagem e cada peça desse grande mosaico que é a obra em si são os responsáveis pelo seu resultado final. No caso de filmes como “Invisível”, um estudo de personagem atento às angústias e às dúvidas de sua protagonista, perseguir essa subjetividade é mais do que um objetivo, é a sua própria condição de existência.

Coprodução entre Argentina, Brasil, Uruguai e França, o segundo longa-metragem de Pablo Giorgelli, diretor do premiado “Las Acacias” (2011), gira em torno de Ely (Mora Arenillas), uma garota solitária de 17 anos, residente do bairro da Boca em Buenos Aires e presa a uma rotina massacrante. Ao se dividir entre o colégio pela manhã – ela ainda cursa o último ano do ensino médio – e o trabalho em um pet shop à tarde, a jovem parece dar sempre os mesmos passos todos os dias. Giorgelli também é roteirista e nos transporta para o universo dessa personagem com sutileza e minúcia, e é fascinante como sua abordagem, econômica e cadenciada, dá espaço para que absorvamos cada cena e projetemos nossas próprias reflexões na tela. A cada informação que nos é oferecida assimilamos com maior inquietação a difícil situação vivida por Ely. Seu rosto, fotografado em close por Diego Poleri desde o primeiro plano, não deixa dúvidas em relação ao âmago do filme. O extracampo é muito bem explorado na tentativa de estabelecer um universo rico e complexo, sem jamais perder de vista, literalmente, a grande força da obra que é a sua protagonista. O êxito de “Invisível”, portanto, passa incontestavelmente pelo consistente trabalho de sua atriz principal. Arenillas maneja bem suas expressões, olhares e movimentos que se repetem – como quando tira sempre o mesmo casaco na sala de sua casa. Eles nos fornecem todas as pistas para que a compreendamos, por mais que nunca sejamos capazes de fazê-lo em sua totalidade. E haveria como atingir tal pretensão?



Ao sermos informados, ainda no primeiro ato, sobre a grande preocupação de Ely – as três semanas atrasadas da menstruação sugerem sua gravidez, logo confirmada pelos exames médicos – passamos a ler o filme de maneira diferente, e os mesmos elementos que povoavam e compunham a narrativa ganham outra dimensão para nós: o sexo casual e a relação fria com o seu colega de trabalho; o choro de um bebê no ônibus; os comentários sociais sobre uma Argentina contemporânea frequentemente expostos nos discursos dos professores do colégio e nos noticiários da TV; o barulho dos automóveis, que acompanha Ely todas as noites antes de dormir no sofá do apartamento que divide com sua mãe – tudo ganha uma proporção e um significado maior. Os ruídos revelam o que não pode ser dito. Ou pelo menos o que não pode ser dito em voz alta e admitido por Ely. A depressão vivida por sua mãe concretiza o discurso social que Giorgelli insere nas entrelinhas da obra. A invisibilidade anunciada pelo título não é apenas de uma personagem, ela carrega um sentido muito mais amplo ao tratar de uma classe social relegada a um cotidiano pernicioso e um sentimento permanente de desesperança.

Discorrer sobre “Invisível” por qualquer ótica que não a de sua protagonista me soa como uma tarefa hercúlea e sem muito propósito, mas é inegável a tentativa por parte do filme de expor um momento tão particular de seu país. Para nossa sorte e deleite, Giorgelli está muito mais interessado nos caminhos que levam sua obra em direção à subjetividade, que é o fim e o meio, ponto de chegada e trajeto ao mesmo tempo. O tema delicado da trama é a todo instante confrontado com escolhas estéticas que não atribuem mais peso do que deveriam à narrativa: a ausência quase total de música não-diegética na trilha sonora, a montagem elíptica que nos permite preencher as lacunas com as nossas próprias conjecturas e os reenquadramentos frequentes que evitam cortes desnecessários e maniqueístas são fruto de uma arquitetura bastante complicada e muito bem executada por uma equipe coesa. No final das contas, o filme jamais sobrecarrega seus próprios personagens e cenas, sem que com isso eles se tornem leves, desinteressantes ou deslocados da proposta central.

Em determinado momento do segundo ato, Ely observa um cachorro sendo operado. A cirurgia é simples e não resulta em nenhuma complicação. O plano é suficientemente aberto para enquadrar o veterinário cirurgião e seu assistente em primeiro plano; o cachorro – ou pelo menos uma parte dele –, que se encontra quase todo fora de campo; e ao fundo Ely, em foco e no centro do quadro. Por conta da expressão catatônica da personagem, todos os elementos em cena, sobretudo o figurino e a direção de arte, nos transportam imediatamente para a ideia de um hospital e de um procedimento de parto. Deslocada do filme, esta mesma cena dificilmente seria vista como tal. Muito provavelmente todos esses mesmos elementos ganhariam uma leitura e, consequentemente, um significado inteiramente diferente caso não soubéssemos do drama vivido por Ely. O enquadramento não chamaria a atenção para si, o figurino e a arte seriam encarados com plausibilidade e nos sentiríamos objetivamente no local em que os personagens de fato se encontram, uma clínica veterinária. Logo, o que nos conduz por esses caminhos de mentiras e ilusões suficientemente bem elaborados a ponto de olharmos para uma coisa e enxergarmos outra?

É apenas através da subjetividade que a encenação toma seu corpo ideal. Nossos olhos, aqui, também são os olhos da protagonista. O medo de se tornar mãe e as angústias deflagradas por uma decisão que precisa ser tomada a qualquer custo são compartilhados pelo espectador num poderoso arranjo de empatia. Esse é um exemplo de como o filme atinge seu objetivo de forma simples, mas lançando mão de estratégias deveras sofisticadas. A invisibilidade de Ely nos contagia, e tornamo-nos, ao final dos 87 minutos de filme, quase tão deslocados e acuados quanto ela. ■

“Invisível” está em cartaz nos cinemas.