"Um Dia de Chuva em Nova York" (A Rainy Day in New York, 2019) - Foto: Imagem Filmes/Divulgação
Foto: Imagem Filmes/Divulgação

Em “Um Dia de Chuva em Nova York”, Woody Allen tenta diálogo com a nova juventude

Woody Allen é um diretor de um só repertório? Sim e não. É evidente que seus temas são recorrentes (e não repetidos), bem como seus personagens, com algumas variações aqui e ali. Porém, o que pode nos escapar em um primeiro momento é a intenção de Allen ao rearranjar seus brinquedos na areia.

A metáfora lúdica favorece a análise sobre “Um Dia de Chuva em Nova York”, dado que o filme é uma fábula sobre um jovem casal que tateia a vida adulta, mas parece ser ainda tão criança em seus ideais. A aventura que se propõem viver em um fim de semana na Grande Maçã acaba se convertendo em uma jornada de (des)encontros. E o fato de os dois namorados (ou quase isso) se perderem de vista simboliza perfeitamente como eles, na verdade, estão perdidos de si mesmos.

A partir deste preâmbulo, dois filmes vêm à mente. Um deles, meio que por acidente enquanto eu escrevia: “A Aventura” (1960), de Michelangelo Antonioni, também um filme de viagem, desaparecimento e procura, cujo drama sobre o vazio existencial dos personagens parece ser uma inspiração ou uma referência (consciente ou não) para Allen aqui.



O outro filme, que não por acaso me ocorreu na memória enquanto eu assistia a “Um Dia em Nova York”, é “Depois de Horas” (1985), de Martin Scorsese. É uma comédia de erros, sobre alguém que tropeça em figuras e situações excêntricas durante um curto período de tempo, tal como os dois namorados do filme de Allen. E também é uma trama situada nas ruas novaiorquinas, porém sob luzes noturnas, que são o oposto das exploradas pelo diretor de fotografia Vittorio Storaro em sua terceira colaboração consecutiva com Allen, após “Café Society” (2016) e “Roda Gigante” (2017).

Cabe uma anotação sobre a fotografia, pois quase sempre se fala sobre Allen em seus filmes, mas não sobre sua equipe. E a habilidade com que Storaro manipula a iluminação, de modo a torná-la uma personagem do filme, é primorosa. A luz responde às emoções das pessoas na tela de maneira semelhante a que vimos em “Roda Gigante”. Allen, ao que tudo indica, encontrou um fotógrafo cuja assinatura tem tanto peso quanto a de seu mais célebre colaborador, o saudoso Gordon Willis, com quem trabalhou de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (1977) até “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985).

Aliás, a lembrança de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” está em “Um Dia de Chuva em Nova York”, já que as cenas de Gatsby (Timothée Chalamet) e Ashleigh (Elle Fanning) juntos remetem às de Alvy e Annie Hall, personagens de Allen e Diane Keaton na mais icônica comédia romântica do diretor. Gatsby e Ashleigh são bem mais jovens, claro (os personagens mais jovens que Allen cria desde “Igual a Tudo na Vida”, de 2003), mas os dois também vivenciam uma atração contraditória um pelo outro. Só que, com eles, Allen antecipa as decisões. O, talvez possamos dizer que ele escolhe não insistir. É, enfim, um rearranjo, uma mudança de percepção, ainda que os personagens, os temas, a cidade, as piadas (a mulher da “risada fatal”, típica cena de uma comédia de Allen) sejam recorrentes.

“A vida real é boa para quem não consegue algo melhor”, diz em certo momento Chan (Selena Gomez), uma amiga de infância que Gatsby reencontra em suas andanças. Reencontro, aliás, que é uma das grandes cenas do filme, pelo diálogo, pelas atuações, pela luz, pela metalinguagem. Na verdade, todas as cenas com Chan e Gatsby são ótimas, com direito a um ato musical de Chalamet esbanjando charme ao piano, ao som de “Everything Happens to Me”, música de Tom Adair e Matt Dennis que tem memoráveis versões nas vozes de Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e Nat King Cole.

Chan é uma ninfa, tanto no sentido mitológico quanto no sexual, é preciso admitir. E sua função na jornada do protagonista é apontar uma revelação: a de que, apesar do estigma do nome, o Gatsby de Woody Allen não é o Gatsby de F. Scott Fitzgerald. Que ele e Ashleigh são jovens demais para perderem tempo vivendo (ou “performando”, para usar um termo da moda) uma relação incompatível. A chuva, como é de se esperar, purifica. O filme é uma fábula moral.

Sendo um “Um Dia de Chuva em Nova York” sobre jovens, paira a dúvida: com este filme, Allen alcançará apenas o seu público cativo? Ou ele conseguirá dialogar com espectadores na faixa etária de seus protagonistas? Afinal, há uma clara resistência de plateias mais jovens ao cinema de Allen — e mais ainda à figura de Allen, devido às acusações que recaem sobre sua vida pessoal. Difícil imaginar, assim, se haverá uma renovação do público do diretor, por mais que ele se mantenha, do alto de seus 83 anos, atento e atualizado sobre as neuroses do mundo à sua volta. A quem estiver disposto, Allen ainda tem sim bom cinema a oferecer. ■

UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK (A Rainy Day in New York, 2019, EUA). Direção: Woody Allen; Roteiro: Woody Allen; Produção: Howard E. Fischer, Adam B. Stern; Fotografia: Vittorio Storaro; Montagem: Alisa Lepselter; Com: Timothée Chalamet, Elle Fanning, Selena Gomez, Jude Law, Kelly Rohrbach, Rebecca Hall, Suki Waterhouse, Liev Schreiber, Diego Luna; Estúdios: Gravier Productions, Perdido Productions; Distribuição: Imagem Filmes. 92 min