"A Negra de..." (La Noire de..., 1966), de Ousmane Sembène - Foto: Janus Films/Divulgação
Foto: Janus Films/Divulgação

“A Negra de…”, de Ousmane Sembène: Ao cair das máscaras do colonialismo

Embora seja um entusiasta e apaixonado pela língua portuguesa, reconheço que certos idiomas muitas vezes possuem, em detrimento de outros, palavras que definem com especial precisão um certo conceito. É sabido, por exemplo, que em inglês não existe um termo específico para o que chamamos tão cirurgicamente de saudade. Mas talvez uma das palavras que mais me fascinam fora do português seja o adjetivo haunting. E não é à toa que trago este vocábulo para falar da obra “A Negra de…” (La noire de…, 1966)*, primeiro filme de duração mais longa do realizador e escritor senegalês Ousmane Sembène e baseado em um conto homônimo do autor.

Haunting, em inglês, significa “assombroso”. Mas a palavra denota ao mesmo tempo algo pungente e evocativo. Ou seja, trata-se de uma força etérea, fantasmagórica. Algo certeiro, mas cheio de nuances. Um emaranhado magnético de sombras. O filme de Sembène transborda todas essas características, talvez de modo mais claro em seu final avassalador.

É curioso como um filme curto consegue contar uma história de forma tão eficaz, sem precisar se estender e sem pretensão de esgotar um tema. A classificação do filme é uma incógnita. No Brasil, ele seria considerado um média-metragem, já que tem duração entre 15 e 70 minutos. Já para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, responsável pela entrega do Oscar, o filme se enquadra na categoria de longa-metragem por ter mais de 40 minutos. O Festival de Cannes, por sua vez, sequer aceitou filmes com duração entre 15 e 60 minutos em sua edição de 2022. Então, A Negra de… estaria em um limbo na França, o que não deixa de ser irônico, considerando o enredo do filme.



No que vou chamar a partir de agora de média-metragem, acompanhamos a história de Diouana (interpretada por Mbissine Thérèse Diop), uma jovem senegalesa que chega à Riviera Francesa para trabalhar como governanta/babá. Porém, a personagem é transformada em uma empregada que executa todo tipo de função doméstica para o casal que a contratou, sem receber salário. Diouana passa então a questionar o trabalho que faz e a vida que leva na França. A semelhança com ‒ ou melhor dizendo, a influência em ‒ o longa brasileiro “Que Horas Ela Volta?” (2015), de Anna Muylaert, é mais que evidente, com o acréscimo de outras questões próprias do Senegal nos anos 1960, como a racialidade, o apagamento da cultura e da identidade africanas e a relação entre colônia e metrópole.

O título adquire, então, um sentido duplo (pelo menos): ao mesmo tempo que pode sinalizar uma origem africana, também traz a ideia de posse e consequentemente de exploração. Diouana é, a um só tempo, uma mulher negra de um país da África, com todas as dinâmicas complexas que esta singularidade traz e toda a sub-representação presente no cinema de então, e um ser humano que tem o corpo e a individualidade invadidos por seus patrões.

É interessante como Sembène é econômico ao narrar a situação na qual a jovem se encontra. O filme começa de uma maneira muito usual, principalmente quando comparado a obras hollywoodianas. Vemos um porto. Logo depois a câmera enquadra dois homens prendendo a corda de um navio à costa. Uma mulher passa pela passarela que dá acesso à área de desembarque. Até que chegamos a um close-up no rosto dela. Em poucos planos, o diretor nos contou: nesta zona costeira vamos seguir a trajetória desta mulher que acabou de chegar de navio. Além disso, na própria embarcação já está escrito o local de destino do navio (Ancerville), o que evidencia que o enredo vai se passar na França. É um jeito quase clássico de demarcar um espaço, uma situação e uma personagem. Logo em seguida, o filme aprofunda essa tendência lógica e linear, mostrando em planos de detalhe duas placas, localizando o espectador na cidade e na rua em que a história se passará. Algo bastante comum nos filmes de Alfred Hitchcock, por sinal. Mais à frente, com apenas um corte, o diretor dá um salto no tempo, e a outrora recém-chegada Diouana já está na casa há muito tempo. Um clássico uso da elipse para ir direto ao que interessa.

Mas se o filme começa tomando emprestado os artifícios dessa narratividade clássica, já é possível identificar nesse início uma inclinação muito forte de Sembène em direção à Nouvelle Vague francesa. O principal indicativo desta influência é o uso do som assíncrono. Antes que a personagem chegue à casa dos patrões, três falas nos são apresentadas desta maneira. Primeiro, ela se pergunta se alguém irá buscá-la no porto, mas nenhum som sai de sua boca. Fica claro então que estamos ouvindo seu pensamento. Instantes depois, quando entram no carro, o chefe de Diouana a pergunta se a viagem foi boa, e a legenda indica um “sim” inaudível fora de campo. Já no veículo, novamente a jovem responde a um comentário do homem sem que possamos ver sua boca.

Isso se torna uma constante ao longo do filme. Ora acompanhamos os pensamentos da personagem, ora suas falas em dessincronia e, recorrentemente, sua mudez. A simbologia fica clara. Enquanto está na França, Diouana literalmente não tem voz, pois a ouvimos falar em raríssimas ocasiões. Sembène se vale do som em off para nos aproximar da personagem. Se em termos de imagem o close-up (também muito usado aqui e bastante valorizado pela vanguarda francesa) coloca frente à subjetividade de alguém, no caso do som são as falas em off que cumprem esse papel, já que nos fazem imergir dentro da mente da protagonista, conhecer seus pensamentos, suas dúvidas e suas inquietações. É um recurso muito eficaz para gerar identificação com o espectador. Na mesma linha, chama a atenção também a não-linearidade da narrativa. Começamos no meio e, avançamos no tempo, e há sucessivos flashbacks que estabelecem eventos pregressos na vida da protagonista.

Devemos lembrar que esta similaridade com a Nouvelle Vague não é casual. Além do imperialismo cultural evidente da França (ex-metrópole) em relação ao Senegal (ex-colônia), existe também o próprio contexto dos anos 1960 em todo o mundo. O país havia se tornado independente apenas seis anos antes, e o média-metragem de Sembène aparece como o primeiro filme de um realizador da África subsariana a ter atenção internacional. Nada mais natural que o cineasta se utilizasse do que havia de mais inovador e questionador em termos de forma para tentar desnaturalizar a mentalidade colonialista que imperava no mundo pós-Segunda Guerra.

"A Negra de..." (La Noire de..., 1966), de Ousmane Sembène - Foto: Janus Films/Divulgação
“A Negra de…” (La Noire de…, 1966), de Ousmane Sembène – Foto: Janus Films/Divulgação

Ecoando muito Cléo das 5 às 7″ (1962), de Agnès Varda, o filme senegalês tira de cena a mulher branca burguesa e se detém sobre as experiências de uma jovem negra e pobre da África, para quem a França está restrita às paredes de uma casa. Vemos Diouana ao longo de todo o filme confinada no pequeno apartamento de frente para o mar, diferente da personagem central do filme de Varda, que tem liberdade para ir e vir aonde quiser. Aqui, Sembène demarca o atravessamento entre raça e gênero, e de como mulheres negras são colocadas em um degrau ainda mais baixo em relação às companheiras de pele clara.

Esta condição de prisioneira (ou escrava, como a própria Diouana define) é transmitida também através dos movimentos de câmera. Enquanto a protagonista está na França, a câmera ou fica parada ou faz panorâmicas discretas, até o final do filme, quando a jovem toma uma atitude radical. A imobilidade da câmera traduz as possibilidades restritas de movimento de Diouana, tanto física quanto socialmente.

Outro elemento visual que contribui para a narrativa é o desenho de produção da obra. Enquanto a jovem senegalesa está na Riviera, sempre existe uma predominância da cor branca emoldurando ou contrastando com objetos ou estruturas pretas. Seja na parede, no piso, na cozinha ou nas roupas da protagonista, a sensação constante é de figuras negras acuadas por entornos brancos, o que, novamente, reforça o que o roteiro do filme está contando. Destaque também para a simbologia do figurino na cena em que Diouana é contratada, em um lugar perturbadoramente semelhante a um mercado de escravos. A futura patroa da jovem usa um vestido totalmente branco, e óculos escuros que permitem a seus olhos verem sem ser vistos, o que é reforçado no comentário em off de Diouana. Aqui, o diretor também faz um comentário sobre o próprio cinema feito em solo europeu, no qual quem tinha o direito de olhar cinematograficamente eram apenas pessoas brancas, enquanto os africanos não tinham nem sequer o direito de ver/retratar quem os olhava/representava.

Talvez o único problema do filme sejam as duas breves cenas que inserem a Política (esta com “P” maiúsculo, que trata de relações institucionais de poder) de forma explícita. Embora sejam compreensíveis (e interessantes) as colocações, já que o filme se passa no período pós-independência, essas discussões são pouco desenvolvidas e parecem muito avulsas na obra como um todo, destoando da proposta mais microssocial e quebrando um pouco o andamento do enredo.

No entanto, esta ressalva é posta totalmente de lado ao final da história, quando o filme transforma um elemento estabelecido desde o início em uma reação metafórica e puramente cinematográfica da Diouana/África liberta contra seus patrões/Europa. Acentuados pela música (que sempre retorna ao mesmo tema) e com direito até mesmo a um jump-cut, os planos finais do filme são de um poder sintético admirável, e nada pode me dissuadir da crença de que Jordan Peele se inspirou nesse final em seu segundo longa-metragem, “Nós” (2019), tanto na máscara do filho mais novo da família principal quando no uso de sombras na areia. Retomo o adjetivo que destaquei no início. Não sei se acharia uma palavra em português com a mesma capacidade de expressar o impacto, a simbologia e a importância destas imagens, que perduram na mente do espectador (pelo menos na minha) mesmo vários dias depois de assistir ao filme. Haunting é o termo mais adequado para transmitir isso.

No final das contas, a partir do ato combativo de Diouana e dos planos finais do filme, é oportuno acionar o psiquiatra e intelectual martinicano Frantz Fanon, em seu célebre livro “Pele negra, máscaras brancas”. Diz o pensador: “Se o branco contesta minha humanidade, eu mostrarei, fazendo pesar sobre sua vida todo o meu peso de homem, que não sou esse y’a bon banania [representação estereotipada e subjugada de pessoas negras] que ele insiste em imaginar. Desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigir do outro um comportamento humano. Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minha liberdade”.

Nota:

*O filme “A Negra De…” está disponível na plataforma MUBI, por meio da The Film Foundation, em versão restaurada pela Cineteca di Bologna/laboratório L’Immagine Ritrovata, em associação com The Sembène Estate, Institut National de l’Audiovisuel, INA, laboratórios Eclair and the Centre National de Cinématographie. Restauração financiada pelo World Cinema Project, da The Film Foundation.

A NEGRA DE (La noire de…, 1966, Senegal, França). Direção: Ousmane Sembène; Roteiro: Ousmane Sembène; Produção: André Zwoboda; Fotografia: Christian Lacoste; Montagem: André Gaudier; Com: Mbissine Thérèse Diop, Anne-Marie Jelinek, Robert Fontaine, Momar Nar Sene, Ibrahima Boy; Estúdio: Filmi Domirev, Les Actualités Françaises; Distribuição: MUBI. 65 min

Filme A Negra De

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