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“Três Anúncios para um Crime”: simpatia pelo demônio

[Esta crítica traz detalhes de cenas do filme que podem ser considerados spoilers.]

“Maybe you only take from this film what you bring with you.”

“Talvez você só extraia deste filme aquilo que trouxe com você.”



(Tim Martain, para a sua crítica de Mãe! no jornal australiano Mercury)

Soturnos, ansiosos; apaixonados, tristes; revoltados, melancólicos – independentemente do estado mental que configura aquele dia específico, nós, ao entrarmos em uma sala de cinema, respiramos fundo, fingimos que deixamos tudo isso para trás e permitimos que as imagens e o som nos envolvam naquilo que parece outro mundo, que não nos pertence. Apesar de distantes, lentamente vamos nos conectando – e, caso o filme seja eficaz em nos tocar com suas construções e coerente em sua narrativa, ao final dele já teremos feito conexões emocionais ou intelectuais o suficiente para sairmos dali satisfeitos, ou completamente decepcionados. Não somos passivos em momento algum: somos vulneráveis, mas nossa vulnerabilidade se dá justamente pela nossa posição ativa de envolvimento. Afetamos o filme tanto quanto ele nos afeta.

Escrevi esta introdução há uns meses, para um texto sobre “mãe!”, de Darren Aronofsky, que nunca foi terminado. Apesar de aquele filme pouco se assemelhar, em tema e estrutura, a este “Três Anúncios para um Crime”, acredito haver uma semelhança quanto à maneira que enxergamos essas duas obras. Assim como ocorreu com o mal digerido “mãe!”, que acabou indo parar até na cerimônia espúria do Oscar-reverso “Framboesa de Ouro”, muitos se dividiram quanto a “Três Anúncios”, vendo níveis diferentes de profundidade nas camadas que o filme objetivamente entrega. A diferença aqui é que este último foi indicado ao Oscar. Mesmo com toda a controvérsia, o filme é capaz de agradar a muitos que se encontram na posição de votantes da maior premiação de cinema do mundo. Por quê?

Há alguns anos, um outro filme sobre violência levava o Oscar de Melhor Filme sob uma chuva de represálias. Esse filme era “Crash – No Limite”, que gerou discussões sobre a forma como retratava o racismo e as diferenças étnicas. A estereotipização de alguns personagens foi criticada e vários condenaram o filme como racista, ou como uma obra que, no mínimo, diminui a culpa dos brancos sobre o racismo ao dizer, implicitamente, que “existe racismo em cada um de nós”. Aqui, existe a mesma condenação, sob um viés diferente: a obra estaria nos fazendo simpatizar com um racista, o personagem de Sam Rockwell, Dixon.

“Três Anúncios”, de fato, se passa em um ambiente que ainda está especialmente permeado de ideias racistas. A cidade de Ebbing é fictícia, mas se encontra no estado de Missouri, nos EUA, que foi palco de um recente caso de violência policial (o assassinato de um homem negro em Ferguson). Dessa forma, é premissa do filme, desde o seu início, mostrar personagens que se encontram profundamente marcados por esse contexto, e também por outros problemas que ainda permeiam o interior estadunidense, como a misoginia, a violência e a falta de recursos da polícia e das autoridades em geral. Assim, nos deparamos com Mildred (Frances McDormand), que, ao perder a filha de um modo horrível e brutal (estupro seguido de assassinato), exige, por meio de três outdoors do lado de fora de sua casa, a tomada de ação por parte dos policiais, que até aquele momento não haviam prendido ninguém por esse crime. A chefia de polícia da cidade é realizada por Willoughby (Woody Harrelson), que simpatiza com a dor de Mildred e é apresentado como um homem gentil, mas que está morrendo de câncer. Seu assistente é Dixon, que tem um histórico (apenas mencionado, nunca mostrado) de violência contra negros, é impulsivo e odiado pelas demais pessoas da cidade.

“Três Anúncios” quer ser um estudo de personagens que foram moldados pelo seu contexto: não é à toa que o nome original do filme, “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri”, cita diretamente o nome da cidade, ressaltando sua significância e ambientando o espectador naquele Sul interiorano. Os três principais personagens podem ser considerados bons exemplos do “white trash” (termo depreciativo que qualifica os brancos pobres dos Estados Unidos), com pouca educação formal e ideias que ainda se mostram conservadoras sobre a família, a honra e a hierarquia social. Porém, apesar de querer mostrar o quanto o ambiente determinaria os atos violentos desses personagens, o filme também quer frisar que os três são radicalmente diferentes como indivíduos. Mildred é fria e comete atos de violência porque quer se vingar; Willoughby é o paladino da lei que usa a violência apenas como forma de conter criminosos; Dixon é o racista e misógino que se mostra violento para compensar faltas próprias.

Essas caracterizações em parte funcionam e em parte se mostram planas e irreais. A porção que funciona se dá única e exclusivamente pela qualidade das atuações. McDormand, por exemplo, consegue conferir a Mildred um ar de quem realmente não queria estar fazendo tudo aquilo, mas o mundo a obrigou. Rockwell dá dimensionalidade a Dixon principalmente nas cenas que dialoga com sua mãe: ao mesmo tempo em que ele concorda com algumas de suas ideias, ele se surpreende com outras, que até para ele soam odiosas demais. Harrelson dá nuances de tristeza a Willoughby, que sempre carrega um peso no olhar como quem sabe que não resta muito tempo.

Porém, o roteiro frequentemente sabota essas caracterizações: e isso se aplica tanto aos personagens humanos quanto ao personagem-cidade de “Ebbing”. Isso é mais evidente no personagem de Dixon: logo após ler a carta deixada por Willoughby, ele sai do fogo, como se renascido, e é perdoado de forma imediata no hospital pelo homem que recentemente espancou e atirou pela janela (Red, interpretado por Caleb Landry Jones). A partir daí, sua personalidade deixa imediatamente de ser de perpetrador da violência para se tornar de sofredor da violência, como num passe de mágica. Não é como se o personagem ganhasse tridimensionalidade por isso: é uma mudança repentina e pouco justificada, visto que essa nuance de personalidade ainda não havia se mostrado em momento algum do filme.

Há também problemas de caracterização do universo em si. O racismo, no mundo do diretor e roteirista Martin McDonagh, está relacionado estritamente a “impulsos de raiva” dos indivíduos, ou “falhas de caráter”. É apenas parte da personalidade de Dixon, por exemplo. Não é tratado de maneira nenhuma como o problema sistêmico que é. Os poucos negros existentes na cidade são apenas meios de externar as características dos personagens principais: o chefe de polícia, por exemplo, é apenas um símbolo de como Dixon se transformou e é capaz de lidar normalmente com pessoas negras. A amiga de Mildred, que foi presa com o único motivo de afetá-la, sai da prisão e prontamente se dispõe a ajudá-la novamente, sem que saibamos como foi, para ela, essa experiência de injustiça. Além disso, o diretor insiste em permear o filme com um humor um pouco inadequado – o que não é um problema em si, exceto que, muitas vezes, transforma situações extremamente dramáticas em situações cômicas sem rir dos causadores da violência, mas sim daqueles que a sofrem. Um exemplo disso é na cena em que o ex-marido de Mildred, Charlie (John Hawkes), a ataca em sua casa: o peso dramático daquele momento, que nos ajuda a compreender como aquela mulher viveu boa parte da sua vida acossada, é quebrado por uma piada com a “burrice” da adolescente que agora namora Charlie.

E por que, então, muitos veem esse filme como o retrato mais fiel dos problemas sociais estadunidenses? O filme adota um tom deveras otimista, principalmente ao final, quando Mildred e Dixon, no carro, admitem não ter mais tanta certeza de que a vingança e o ato de violência contra o suposto estuprador seriam o melhor caminho. No filme, principalmente devido às cartas de um homem morto, o amor passa a superar os impulsos de raiva e vingança dos personagens. Nesse sentido, a mensagem é interessante, porém, acredito que estou apenas levando ao filme o que trago comigo. Muitos interpretaram o final em aberto como uma “união de forças” para a realização da violência. Muitos interpretaram a personagem de Mildred como a mulher atual, que quer vingança pelos atos cometidos há séculos por homens machistas. E muitos, na lacuna da ausência total de discussão explícita no filme sobre o racismo sistêmico da nossa sociedade, aproveitaram para reafirmar suas visões sobre o racismo ser culpa de alguns indivíduos cruéis, e não parte do motor basilar da forma como vivemos. Isso é uma postura muito confortável: e se o filme conforta ao discutir questões tão pungentes, há, ao mesmo tempo, uma desculpa para a indicação ao Oscar e um problema muito sério. ■

“Três Anúncios Para um Crime” está em cartaz nos cinemas.