"Quando Aqui" (2024), de André Novais Oliveira - Foto: Clara da Matta
"Quando Aqui" (2024), de André Novais Oliveira - Foto: Clara da Matta

“Quando Aqui”: Dez mil anos na periferia de Contagem

Ao chegar a Tiradentes para a 27ª Mostra de Cinema realizada na cidade, não pude deixar de pensar e de imaginar quanta história já deve ter passado pelas ruas de pedra do centro histórico. Comerciantes, mineradores, figuras políticas, trabalhadores afro-brasileiros então escravizados. Esta talvez seja uma reflexão constante no que diz respeito a lugares ostensivamente históricos. Mas, e quanto aos locais mais prosaicos? Nosso bairro de todo dia, nossa rua de sempre, nossa casa? O passado e o futuro de lugares tão familiares a nós podem até não ser objeto de questionamento constante, mas sem dúvida essas temporalidades existem, e talvez olhar para elas seja uma importante chave para compreender onde estamos, quem veio antes de nós e quais as possibilidades de um porvir. Mais ainda: entender as histórias que atravessam nosso cotidiano é talvez a forma mais clara de nos enxergamos como seres históricos, capazes de modificar a realidade.

Estas parecem ser as propostas de André Novais Oliveira, cineasta mineiro homenageado (ao lado da atriz também mineira Bárbara Colen) na edição de 2024 da Mostra de Cinema de Tiradentes, com seu mais recente filme, “Quando aqui”, finalizado em poucos dias no mês de janeiro, especialmente para estrear no evento. Embora tenha sido feito em tempo recorde, “Quando aqui” apresenta uma premissa de consolidada maturidade. O filme acompanha diversas linhas temporais ‒ algumas fabuladas, outras historicamente mais acuradas ‒ que atravessam a história da mesma casa em Contagem, onde moram Renato Novaes, Norberto Novais Oliveira e Maria José Novais Oliveira, respectivamente irmão, pai e mãe do realizador.

Em seu filme anterior, “O dia que te conheci” (2023), existe uma proposta de unidade semelhante, neste caso temporal. No longa, que também passou nesta 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes (em uma sessão lotada na praça, que reafirma sua trajetória premiada em festivais), acompanhamos um casal que desenvolve um delicado mas intenso sentimento de afeto durante um único dia. O curta “Fantasmas”, lá do início da carreira do diretor e que introduziu a sessão de seu mais recente longa, também é célebre por ter sido filmado em um único plano fixo que não mostra os personagens. Talvez então esta seja a vocação maior do cineasta, o ímpeto quase hitchcockiano de se desafiar com uma premissa simples, com algum elemento formal e narrativo aparentemente restritivo, mas engrandecido por sua habilidade ímpar enquanto realizador, de tirar mundos dessas pequenas ideias. Em “O dia que te conheci”, um dia serve para conectar duas pessoas. Já em “Quando aqui”, é a casa que liga os universos.



Ao longo de quase 40 minutos, o média-metragem, roteirizado pelo próprio André Novais em parceria com Esther az e Clara da Matta, entrelaça o presente da família com registros também familiares do passado, mas vai ainda mais longe, com digressões para tempos longínquos, do período pré-colonial brasileiro à pré-história. O futuro também se faz presente, com projeções de novos moradores, relações e famílias habitando aquela mesma casa nas décadas seguintes ao nosso tempo. Ao contrário de seus outros trabalhos, que geralmente investem em uma narrativa linear, aqui somos apresentados a uma série de instantes que, se tem na casa o elemento de protagonismo, abandonam completamente qualquer compromisso com um tempo específico. E, se tempo e espaço são inseparáveis, André Novais Oliveira demonstra neste filme que um mesmo local pode abrigar vários lugares, a depender de quando direcionamos nosso olhar.

Não deixa de ser uma ambição nova e surpreendente para um cineasta que, como a produtora Filmes de Plástico (da qual faz parte), sempre trabalhou com microcosmos muito particulares. A universalidade e a tematização de questões fundantes da humanidade estavam presentes constantemente, claro, mas nunca para além do aqui e agora. Os ecos do passado desigual e violento do Brasil também nunca foram omitidos, mas sua percepção sempre se deu pelas consequências atuais, no dia a dia de pessoas comuns, vivendo em uma região metropolitana. Por isso, a incursão visual do cineasta por outras épocas é inesperada, mas não menos coerente. Se André Novais Oliveira é, como Ozu, o poeta do cotidiano, do extraordinário em meio ao banal, faz total sentido que a casa de sua família se torne o cenário de um quase-tratado brasileiro, tão singelo quanto grandiloquente.

O dispositivo aqui é simples, mas preciso: o filme começa com Renato Novaes conversando com seu pai, Norberto, que lhe conta como a casa onde estão passou de imóvel alugado a propriedade da família. Ele termina de ouvir a história e sai apressado, sem tempo. O pai fica sozinho em casa, e a partir daí, sucessivas vezes, o quadro que vemos (seja no passado, no presente ou no futuro da residência) ganha uma espécie de janela retangular sobreposta, na qual outra temporalidade invade o momento que acompanhamos. Nunca se indica que tudo pode ser uma fabulação do pai. Tudo é, na verdade, o cinema do filho, sem explicações ou porquês diegéticos.

Ao recorrer à tela dividida e à multiplicidade de agoras, André Novais Oliveira mostra e explicita ao espectador aquilo que só o cinema é capaz de fazer: conjugar lugares e pessoas que, neste nosso mundo real, estariam separados pelas barreiras do tempo e do espaço. É o que acontece, por exemplo, quando um cachorro do presente é inserido em uma área de vegetação nativa do Brasil Colônia. Ou quando uma planta de milhares de anos atrás aparece em um recorte, no quintal da residência protagonista.

O cineasta, porém, não abandona seu já notório cuidado formal com as imagens. Seja pelas linhas das superfícies, pelas arestas dos objetos ou pelo próprio posicionamentos dos quadros suplementares dentro do quadro principal, toda a mistura de temporalidades é feita em contiguidade visual, tornando as imagens complementares, como se várias radiografias de um mesmo local estivessem sendo perfeitamente sobrepostas. Concretamente no plano, mas também de forma simbólica, as linhas do passado e do futuro se prolongam no presente.

O efeito conseguido a partir desta ideia, tão discreta quanto a poética em si contida, é o de dar protagonismo aos diversos Brasis que cabem dentro de uma casa periférica. Uma família heterossexual com um filho pequeno, um casal de homens prestes a se mudar para a casa, a mãe de André Novais e a ventania forte que insiste em tirá-la do chão (cenas de seu curta-metragem “Quintal”, de 2015), duas mulheres indígenas da etnia Krenak conversando em sua língua nativa antes da colonização, um homem negro escravizado em um momento de espiritualidade ancestral na floresta do século XXVIII. Tudo que poderíamos ter sido, ou fomos, ou ainda viremos a acontecer. São, afinal, 10 mil anos na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte.

"Quintal" (2015), de André Novais Oliveira - Filmes de Plástico
“Quintal” (2015), de André Novais Oliveira – Filmes de Plástico

Para André Novais Oliveira, historiador de formação, cada casa é um museu, e cada quintal um grande relicário de histórias. Também aqui na cidade histórica, a Ministra da Cultura, Margareth Menezes, disse em sua fala no Fórum de Tiradentes uma frase que torno a recordar diariamente: “Em todos os lugares deste país existe cultura”. Eu acrescentaria que em todos os lugares deste país existe história. André Novais, neste que parece ser um novo passo de ousadia em sua já exitosa carreira, trata de não nos deixar esquecer disso. ■

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Nota:

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QUANDO AQUI (2024, Brasil). Direção: André Novais Oliveira; Roteiro: André Novais Oliveira, Esther az, Clara da Matta; Produção: André Novais Oliveira, Clara da Matta, Gabriel Martins, Maurilio Martins, Raquel Hallak, Thiago Macêdo Correia; Fotografia: Wilssa Esser; Montagem: André Novais Oliveira, João Gabriel Riveres; Com: Norberto Novais Oliveira, Renato Novaes, André Novais Oliveira, Maria José Novais Oliveira, Felipe Oládélè, Matéria Prima, Natalia Neves, Lucas Azevedo, Sofia Azevedo, Italo Augusto, Danilo Souza, Wellington Cintra, João Batista de Azevedo, Yná Krenak, Shirley Djukurnã Krenak; Estúdio: Filmes de Plástico, Universo Produção; Distribuição: Universo Produção; Duração: 36min.

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