A Batalha do Chile

No início dos anos 1970, o Chile teve um importante papel na conjuntura política da América Latina. A população viu o país passar por uma grande mudança com a eleição de Salvador Allende, cujo principal objetivo era socializar a economia. Seu projeto de reforma, que incluía a nacionalização das indústrias, encontrou duros opositores que exigiram sua renúncia. Allende acreditava na força popular e por ela decidiu lutar até o fim. Em 11 de setembro de 1973, ele se suicidou quando as Forças Armadas, apoiadas pelos Estados Unidos, cercaram, bombardearam e invadiram o Palácio de La Moneda.
“A Batalha do Chile” é um documento que deve ser visto por qualquer um que queira entender como funciona um golpe de estado. Dividido em três partes, o documentário de Patricio Guzmán reúne muito mais do que imagens de arquivo que mostram como governo de Allende ruiu. É uma obra construída por pessoas que testemunharam um momento de intensa transformação no país. Guzmán e sua equipe – basicamente formada por ele e seu diretor de fotografia, Jorge Müller Silva, a quem o filme é dedicado – filmaram tudo o que puderam acompanhar de perto, desde a posse de Allende até o bombardeio a La Moneda. Guzmán registrou a História sendo feita. Assim, ao invés de apenas ouvirem falar, futuras gerações puderam ver exatamente o que ocorreu naquele turbulento período. Graças às imagens que conseguiu captar (as cenas são objetivas e bem planejadas) e à sua épica organização do roteiro à montagem, que lhe consumiu anos de trabalho, o diretor fez “A Batalha do Chile” se tornar mais envolvente do que qualquer filme de ficção que possa tentar retratar o que aconteceu no país.
A primeira parte, “A Insurreição da Burguesia”, traça um panorama da situação em que se encontrava o governo em seus primeiros anos e os pontos que levaram a oposição a tomar medidas drásticas para derrubar Allende. O filme termina com uma imagem angustiante feita por um cinegrafista argentino, que filmou seu próprio assassinato, ao ser baleado por um oficial do exército, enquanto cobria uma das primeiras investidas militares. É o prenúncio do que está por vir na segunda parte, “O Golpe de Estado”. Guzmán, mesmo quando não pôde colocar sua câmera na rua, utilizou os recursos de que dispunha para não deixar aqueles dias decisivos serem esquecidos. A sensação que o diretor passa ao espectador é aquela que ele realmente deve ter sentido na época: ficar acuado, impotente, sem poder fazer alguma coisa para impedir o golpe, apenas vendo na TV e ouvindo pelo rádio os últimos momentos de Allende. Já a terceira parte, “O Poder Popular”, funciona mais como um apêndice, mostrando como os trabalhadores se organizaram para manter vivo o ideal do lema “Criar! Criar! Poder popular!”
Guzmán também se beneficia por não tornar o documentário panfletário. Ele age como um historiador, mostra os dois lados, junta os fatos e os apresenta. Independente da posição política de quem filmou ou de quem assiste, “A Batalha do Chile” é um trabalho factual. Mostra a derrocada de um sonho e a imposição de um sistema opressor. Se o espectador se sente compelido a apoiar ou não as idéias de Allende, isto acontece devido a sua bagagem política e cultural, e não porque o filme o força a ter uma opinião.
A Batalha do Chile (La Batalla de Chile, 1978-1980, Venezuela/França/Cuba). Direção de Patricio Guzmán.
O DVD
Parte da Coleção Videofilmes, “A Batalha do Chile” vem em uma caixa com quatro DVDs, cada um em estojo próprio. Os três primeiros são dedicados às três partes da trilogia. Os filmes estão com ótima qualidade de imagem, tendo em vista a época e a forma como foram feitos. O som está limpo e vem em duas faixas Dolby Digital 2.0, nos idiomas Espanhol e Português.
O quarto disco do box é composto por três extras atrativos e importantes. O primeiro é o documentário “A Resistência Final de Salvador Allende”, de 1988, dirigido por Patricio Henriquez. O filme reúne depoimentos de testemunhas sobreviventes do ataque ao Palácio de La Moneda. Enquanto elas contam como foi aquela fatídica manhã de 11 de Setembro de 1973, imagens de arquivo e trechos de transmissões radiofônicas de Allende e dos oficiais das Forças Armadas reconstituem os acontecimentos que precederam o golpe. Trata-se de um complemento de “A Batalha do Chile” e também enriquece o retrato de Allende como mártir do desejo de um povo por um governo mais justo. Reforça também como o golpe foi um ato criminoso altamente condenável, sob qualquer circunstância, em qualquer regime democrático.
O segundo documentário do disco, “Patricio Guzmán: uma História Chilena”, de 2001, dirigido por Catalina Villar, é um suplemento igualmente rico, pois fornece informações sobre a feitura de “A Batalha do Chile”. O mesmo pode ser dito da entrevista com o diretor, feita por José Carlos Avellar em 2005, que também está entre os extras. Nesses dois materiais, Guzmán mostra, por exemplo, como organizou o roteiro e explica como filmou algumas cenas, enquanto as assiste (neste ponto, torna-se impossível não desejar uma faixa de comentários em áudio com o diretor, que, infelizmente, não está disponível). Ele também fala da paixão que sentia por estar filmando aqueles momentos históricos e de poder ter presenciado de perto a eleição de Allende e tudo o que se seguiu. Para completar, Guzmán fala rapidamente sobre alguns de seus filmes posteriores, que são desdobramentos de “A Batalha do Chile”.