Pra levar a sério

É sempre interessante quando um filme surpreende por se revelar algo que o cartaz de cinema ou a capa do DVD não deixam transparecer. Em alguns casos, até mesmo o título ou o rótulo dado pelo distribuidor – comédia, terror, ação – acaba escondendo a verdadeira proposta do diretor. Mas, no caso de dois filmes que chegaram recentemente às videolocadoras brasileiras, são os próprios atores principais que podem enganar o público – e, felizmente, isso é muito bom.

Em “O Segurança Fora de Controle”, Seth Rogen, conhecido de comédias como “Ligeiramente Grávidos”, “O Virgem de 40 Anos” e “Pagando Bem Que Mal Tem?”, interpreta o responsável pela equipe de vigia de um shopping center. A princípio, estamos diante de uma comédia americana tradicional, dessas que são um prato cheio para qualquer sessão da tarde – e a Warner acredita piamente nisso, visto o título que escolheu para o Brasil, quando o original é muito mais elegante: “Observe and Report”.



Mas, aos poucos, o protagonista vai revelando um lado psicótico assustador. Obstinado por ser reconhecido como um verdadeiro policial, e não ser visto apenas como um mero segurança de shopping, ele entra numa espiral de ações cada vez mais desmedidas, inconsequentes e inesperadas. Sua trajetória chega a ser trágica de certa forma, e a interpretação de Rogen é provavelmente a melhor de sua ainda jovem carreira.

Não é à toa que a crítica norte-americana comparou “Observe and Report” ao clássico de Martin Scorsese “Taxi Driver”, de 1976. Afinal, o personagem interpretado por Robert De Niro atravessa um drama muito parecido ao tentar “limpar” as ruas de Nova York e ter algum valor para a sociedade, por mais que para isso use métodos nada aprováveis. Dândis tortos, tanto o taxista Travis Bickle quanto o segurança Ronnie Barnhardt querem se impor, como se o tempo todo fizessem para todo mundo a pergunta: “Com quem você acha que está falando?”

Este é o segundo longa-metragem de Jody Hill, que mostra na montagem com voice-over de Rogen, na construção dos planos-sequências e na inventividade de algumas cenas (a briga com a lanterna é comparável à sequência de luta com o martelo em “Oldboy”) porque devemos ficar de olho em tudo que ele fizer daqui em diante. Hill segue um estilo parecido com o de David Gordon Green em sua veia cômica (que, por coincidência, também teve Seth Rogen como guia no impagável “Segurando as Pontas” – também lançado só em DVD no Brasil). Inclusive, Hill usa o mesmo diretor de fotografia de Green, Tim Orr.

O cineasta merece ser elogiado ainda pela escolha perfeita das músicas que compõem a trilha sonora, que inclui bandas novas e clássicas, com destaque para Queen, Pixies e The Band – que entoa aquele que pode ser considerado o tema do protagonista, “When I Paint My Masterpiece”, que tem letra de Bob Dylan.

Outro filme que pode enganar pela capa e que, coincidentemente, também acabou saindo direto nas locadoras brasileiras é “JCVD” – título que nada mais é do que as iniciais de Jean-Claude Van Damme. Isso mesmo, o ator belga, famoso pelos filmes de ação e de luta, faz aqui um trabalho praticamente auto-biográfico, que tem partes de ficção e quase de documentário.

Van Damme interpreta ele mesmo e, no intervalo da produção de mais um filme policial para seu extenso currículo, ele se vê envolvido numa situação digna de um roteiro de cinema. Feito refém em um assalto a uma agência de correio, Van Damme acaba se passando por bandido e leva a polícia e a imprensa a acreditar que ele é o responsável pelo crime.

“JCVD” é bastante auto-referencial, repleto de piadas internas (os nomes de John Woo e Steven Seagal são inevitavelmente citados) e o tempo todo apresenta situações em que o próprio Van Damme, em lampejos de imaginação, deseja poder resolver tudo como num de seus filmes, dando um golpe de karatê e salvando o dia. Mas a vida pessoal de Van Damme (que não sabemos ao certo até onde apresenta fatos ou invenção na tela) toma conta e, em certo momento, ele chega a falar diretamente com a câmera. Seu monólogo, sincero e até tocante, surge numa das opções mais brilhantes do diretor francês Mabrouk El Mechri, em seu terceiro longa. O cineasta, de quebra, ainda é competente na direção de cenas de ação, vide a sequência de abertura.

Se você nunca viu Van Damme atuar para valer, chegando até a improvisar, aqui está uma chance única. E aí a redenção deixa de ser apenas do Van Damme personagem.

O Segurança Fora de Controle (Observe and Report, 2009, EUA) nota: 9/10 — compre o DVD
direção: Jody Hill; roteiro: Jody Hill; fotografia: Tim Orr; montagem: Zene Baker; música: Joseph Stephens; produção: Donald De Line; com: Seth Rogen, Ray Liotta, Michael Peña, Anna Faris, Dan Bakkedahl, Jesse Plemons, John Yuan, Matt Yuan, Celia Weston, Collette Wolfe; estúdio: De Line Pictures, Legendary Pictures; distribuição: Warner Bros. 86 min

JCVD (2008, Bélgica/França/Luxemburgo) nota: 8/10 — compre o DVD
direção: Mabrouk El Mechri; roteiro: Mabrouk El Mechri, Frédéric Benudis, Christophe Turpin; fotografia: Pierre-Yves Bastard; montagem: Kako Kelber; música: Gast Waltzing; produção: Sidonie Dumas; com: Jean-Claude Van Damme, François Damiens, Zinedine Soualem, Karim Belkhadra, Jean-François Wolff, Anne Paulicevich, Liliane Becker; estúdio: Samsa Film, Artémis Productions, RTBF, Gaumont; distribuição: Imagem Filmes. 97 min